
"A verdade é que continuamos a desvalorizar o poder que exercemos sobre os outros, achando sempre que não conseguimos atingir o interlocutor. Mentira: basta, por vezes, uma frase agreste, para lhe provocar os mais estranhos comportamentos, equívocos e intenções. Depois, o outro fica embatucado, digerindo o que lhe dissemos, e nós supomo-lo indiferente. Outro erro: a indiferença não passa de uma atitude, pois ninguém é imune a insultos, reparos ou desconsiderações. É então que carregamos no tom e reincidimos, tentando ao menos abaná-lo, e que o outro, já ferido, reage de forma imprevisível.
As palavras, por exemplo: têm um valor facial tão poderoso ou mais do que a intenção que lhes preside. Ou o contrário; o tom que usamos ou a expressão que esboçamos podem causar mais dor e ressentimento do que uma bofetada em pleno rosto.
(...)
Misteriosa, mas exaltante, a noção de que ninguém nos é totalmente indiferente e de que nunca o somos verdadeiramente para os outros (...).
E não há inocência na conduta que se adopta, nas palavras que se escolhem ou no seu sentido oculto; somos livres e responsáveis para usar desse poder como um feitiço ou uma arma, porque o seu efeito é obscuro e as responsabilidades difíceis de imputar. Mas cuidado: o efeito que buscamos pode resultar noutro bem diferente, ou até oposto ao pretendido. Não há regras. Há gestos grandes que nos deixam impassíveis e atitudes mesquinhas que mudam a nossa vida. Depende do dia, da lua, do estado de alma, do tempo, da atenção, da autoria."
Rita Ferro in "Não me contes o fim"